O Mito de Narciso




Neste artigo, vamos fazer uma análise psicológica do mito de Narciso, personagem grego que nasceu com um dom que se converteu em maldição: sua beleza.

Diz-se que ao nascer, os sábios orientaram sua mãe que jamais deveria deixar o menino olhar sua imagem em um espelho, pois o choque ao ver sua beleza seria imprevisível. Assim viveu o garoto, até que um dia, durante uma caçada em meio ao bosque, parou para tomar água em um lago que ali havia. Ao ver sua imagem refletida nas águas serenas do lago, tal como um espelho, viu imagem de tamanha beleza que tão logo a contemplou já se apaixonou e então, perdido de amor, tentava abraçar a imagem mas sempre que tocava o lago ela se desfazia em suas mãos.

Depois de muito tentar, percebeu que tratava-se de um amor impossível e, já sem esperanças, decidiu matar-se ali mesmo, à beira do lago. E do sangue que regou a terra nasceram flores brancas, as quais se deu o nome do jovem: narciso.

Em geral, é consenso interpretar o mito como a história de uma pessoa enamorada de si mesma que cai no erro de confundir-se com sua imagem no lago. Muito se fala dos narcisistas, pessoas que se amam mais do que amam a qualquer outra pessoa. Também é consensual entender que a história terminou em tragédia. Porém, à luz da simbologia universal, utilizando-se das analogias presentes em todos os mitos, podemos fazer uma nova leitura desta narrativa e perceber nela algo mais, que tal qual um farol nos faz olhar na direção de cada nós mesmos.

De fato, Narciso é uma pessoa enamorada de si mesma e de fato, caiu no erro de confundir-se com sua própria imagem no lago. O detalhe é que esse mito não fala de um garoto em particular, mas sim de uma característica típica de todo ser humano, seja bonito ou feio, novo ou velho. Para entender isso precisamos antes entender o que é a paixão. A paixão é uma força de atração, um magnetismo que em realidade nós projetamos sobre o objeto do encantamento. As coisas pelas quais nos apaixonamos muitas vezes não tem todo aquele brilho, mas nós depositamos nelas todo o brilho do mundo (nosso mundo) e então nos sentimos fatalmente atraídos por elas. Na verdade, a pessoa apaixonada é a grande responsável por isso, pois ela é quem se enamora e ao mesmo tempo a fonte geradora de todo magnetismo depositado.

Quando uma pessoa se apaixona (e isso pode ser por uma outra pessoa, por um objeto, ou por um ideal, não importa) o que ocorre é que a pessoa se apaixona por um ideal que está dentro dela mesma e ela projeta sobre o objeto de sua paixão. Na história de Narciso, acontece igual: ele se apaixona por um reflexo que ele mesmo projetou no lago (símbolo do inconsciente, representando também nossas energias criadoras/criativas, fonte daquilo que os alquimistas chamavam de luz astral). Em outras palavras, sempre que estamos apaixonados, estamos vendo um ideal projetado sobre a outra pessoa e não a própria pessoa, a qual a gente vai ver um pouco depois que a embriaguez da paixão diminuir (que, segundo estudos, pode chegar a durar até dezoito meses). Quando a overdose de hormônios da felicidade diminui, a pessoa deixa de ver o ideal e passa a ver o real e nisso muitas vezes é que vem a decepção, a desilusão (observe-se a palavra, indicando que a ilusão se foi). Até aqui, então, vemos que todos somos Narcisos, sempre buscando um lago para refletir nossa própria imagem e dizer “que coisa linda!”

Porém, no mito, Narciso não fica só nisso por muito tempo. Tão logo percebe que aquela paixão é impossível (é ilusória) ele resolve morrer. Nos mitos, a morte associa-se à transformação, a deixar de ser o que se é. E isso vem confirmado logo em seguida, quando de seu sangue brotam flores brancas, as quais recebem o seu nome. As flores, nos mitos, geralmente representam as virtudes da Alma ou o resultado da transformação. São brancas porque fazem a percepção retornar à pureza, ao original, ao que realmente é.

Em síntese, encontramos no mito de Narciso muito mais do que a figura do amor por si mesmo, mas o princípio da natureza humana de depositar sua imagem, seu reflexo, em tudo que vê. No mito é abordado um lado da moeda, que é a questão de lançar seu reflexo e apaixonar-se, mas isso deve-se ao fato de que sua imagem era bela. Mas quantas vezes lançamos um reflexo tenebroso sobre as pessoas e nada mais é do que nossa própria imagem que refletimos? Por exemplo, a pessoa que está sempre mentindo: naturalmente, está sempre achando que os outros mentem pra ela. O malicioso está sempre achando que estão querendo enganar ele. O cobiçoso, sempre com medo que peguem o que é dele. O irado está sempre achando que estão respondendo “torto” pra ele. O luxurioso não pode ver um sorriso do sexo oposto que já fantasia onde aquilo vai terminar. Enfim, basta pensar que se uma pessoa está usando óculos com lentes vermelhas, tudo que ela enxergar vai ter uma tonalidade vermelha. Isso nos mostra o mito de Narciso: tudo que enxergamos em um primeiro momento tende a ser uma projeção de nosso mundo interior, que personificamos nas pessoas e acontecimentos à nossa volta.

Para concluir, Narciso (agora podemos chamar de o herói Narciso) mostra que é necessário matar a si mesmo, no sentido de renunciar a essa visão distorcida, egoísta, tendenciosa, para que então surjam a visão adequada, real, “pura”. E, para completar essa jornada de transformação, precisamos aprender a olhar para dentro e enxergar essas pequenas distorções da realidade.


(Roger Alves - Revolução Interior)

0 comentários:

Postar um comentário