Quem roubou meu pão?

“Socorro: roubaram meu queijo!”, escreveu Ilene Hochberg. Até agora não sei se ela o encontrou. Desconheço seu paradeiro. Caso tenha sido consumido, ainda resta saber se foi por obra de humanos, de gatos ou ratos que, aliás, apreciam muito o referido prato. Pra dizer a verdade, nem li o livro. Mas o título valeu-me para pensar no “pão”. Ocorre que este também foi roubado. Achava-se sobre a mesa. Estava reservado aos famintos, que ainda são muitos, e simplesmente sumiu!

Alguém saberia informar para onde foi levado todo o pão que não está onde deveria estar? Quem se apossou dele, encontrava-se mesmo com fome ou o fez levado por desejo incontrolado de ganância? Procura-se onde estiver, pois, como é sabido, pão acumulado estraga, cria bolor, faz mal, principalmente para quem ficou sem.

Feita a refeição, no centro da metrópole, uma senhora pobre, negra, de idade avançada, recém-saída do hospital, aproximou-se e, com respeito, pediu se podia tomar um pouco da minha liberdade. “Com certeza, respondi”. Então prosseguiu: “Acontece que estou com fome e não tenho dinheiro para comprar um pão.” Logo adveio a pergunta: “Quem lhe roubou o pão? Ou, por acaso, não lhe assiste o direito de tê-lo?”.



Bens desviados


De imensa multidão, roubaram o pão e o direito. Fiquei pensando se o dinheiro para adquirir o pão não está nos bancos que faturam enormes e crescente lucros. Senão vejamos: “O Bradesco, maior banco privado do país, anunciou ontem lucro líquido de R$ 5,82 bilhões entre janeiro e setembro. O valor é 73% superior ao de igual período do ano passado, quando a instituição havia registrado ganho de R$ 3,35 bilhões” (O Estado de São Paulo, 6/11/2007, B7). Diz tratar-se do maior lucro já atingido por um banco brasileiro de capital aberto.


No dia seguinte, o mesmo jornal (p. B4) noticiou que outro banco, o Itaú, teve um lucro líquido de R$ 6,44 bilhões entre janeiro e setembro, superando o arqui-rival Bradesco. Nessa briga para ver quem é o mais poderoso, o Itaú teve um ganho de 113% superior ao que obteve no ano passado. Foi o maior lucro entre bancos de capital aberto em 20 anos. Vale perguntar: onde será empregado tamanho lucro, obtido com o sacrifício dos poupadores, altos juros pagos pelos empréstimos e investimentos especulativos?


A premissa da desigualdade é sempre a mesma. Quando sobra muito em uma ponta é porque falta na outra. O acúmulo pode ter diversas origens. Mas, obviamente, ele só se mantém pela falta de distribuição e pelas ações fraudulentas, que se multiplicam e se transfiguram. Mudam de nome para ter livre conduta. Ora é peculato, depois subtração, evasão de divisas, estelionato, sonegação etc. Isso sem contar com os lucros e ganhos abusivos.



E nós, nos calamos?


No Brasil, temos vacas superfaturadas (caso Calheiros), leite adulterado (com soda cáustica) e queijo roubado. Roubam também a pureza e a força das águas, o verde e o frescor das florestas, a fertilidade e as riquezas do solo. Ademais, muitos homens e mulheres, jovens, idosos e crianças têm sua liberdade saqueada. Sua dignidade, sua paz e seus sonhos são furtados à luz do dia e na escuridão da noite.


É como poetizou Eduardo Alves da Costa: “Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem; pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada”.


Não esqueçamos: roubo é pecado. Fere o sétimo mandamento divino. Atenta contra a soberania ética e moral. Foi por esta razão que Moisés, o líder libertador do Antigo Testamento - aquele que recebeu as Tábuas da Lei no Monte Sinai - orientou o povo para não acumular o maná. Todos deviam tomar apenas uma medida por dia, segundo a necessidade de cada pessoa (Ex 16, 16).


Quem roubou o queijo e o pão, a flor e o fruto, a luz e a voz, não tem escrúpulo para roubar também as sementes e as utopias. Os ladrões, entretanto, nem sempre estão fora. Podem estar dentro de casa. Não fujamos com o pão e o queijo que pertence aos nossos companheiros e companheiras. Não deixemos, também, que outros o façam. Na mesa da humanidade, servida pelas mãos da justiça, todos devem ter garantido o direito ao pão com dignidade.



Dirceu Benincá,
padre, doutorando em Ciências Sociais pela PUC-SP.

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