A Caixa de Pandora


A mitologia grega nos traz uma versão similar à bíblica no que se refere à origem do sofrimento, através do mito de Pandora. Mas antes de entender esse mito, vale a pena começar a narrativa com a história de Prometeu e seu irmão Epimeteu.

Na mitologia grega, Prometeu e Epimeteu são dois titãs, que pertencem ao grupo dos antigos deuses, ou seja, os que governavam antes dos deuses olímpicos. Conta a lenda que as criaturas foram feitas da terra, do limo e do fogo e depois de prontas, foi dada a tarefa a estes dois irmãos de distribuir os atributos às espécies. Epimeteu atribuiu então a cada animal uma série de habilidades: a uns dava força, a outros agilidade, a outros asas, chifres, veneno, etc. Quando chegou na última criatura, o homem, já havia distribuído todos os dons entre os outros animais. Recorreu então a seu irmão, Prometeu, que decide roubar o fogo dos deuses e doá-lo à humanidade. Em represália, Zeus manda acorrentar Prometeu em uma rocha e uma águia (ou abutre) vem todos os dias para devorar o seu fígado. À noite, como Prometeu é imortal, o fígado se regenera e no dia seguinte novamente o seu fígado é devorado. Prometeu permanece nesse sofrimento até o dia em Héracles (ou Hércules) o liberta.

Os deuses decidem castigar também a humanidade por ter se apropriado do fogo sagrado. Para tanto, criam Pandora, a primeira mulher e cada deus deposita um de seus atributos nela e a enviam a Epimeteu, que a toma como esposa, apesar das advertências do irmão para não aceitar presentes dos deuses. Junto com Pandora, enviam uma caixa fechada, que dizem a ela que não deve abrir. Mas uma bela noite, tomada pela curiosidade, Pandora decide abrir a caixa e de dentro dela saem todos os males do mundo, como a fome, a doença, a guerra e o sofrimento. E depois de sair todos os males, sai de dentro da caixa uma pequena estrela que representa a esperança.

O nome “Prometeu” significa “aquele que prevê” ou “que pensa antes de fazer” e Epimeteu “aquele que pensa depois”, ou seja, Prometeu é o símbolo daquele que é precavido, prudente e ponderado, enquanto que Epimeteu é o seu oposto, ou seja, é a espontaneidade, a imprudência e a impetuosidade. Ambos representam a natureza humana, em seu antagonismo intelecto x instinto, razão x impulso.

Tal como o Criador faz a criação à sua imagem, Epimeteu dá os atributos aos animais, que são justamente a expressão instintiva da natureza, enquanto que Prometeu dota os homens com a capacidade do raciocínio, da abstração e da metodologia. Mas ele ainda dá algo mais aos homens, que é algo que ele, por si só, não possui: o fogo sagrado. O fogo sagrado é o que diferencia o ser animal do ser espiritual e ao receber esse presente, o homem passa a desfrutar da possibilidade de ser como os deuses.

No Gênesis bíblico, o fogo sagrado corresponde à árvore do conhecimento do bem e do mal, de onde provém a sabedoria e que tem suas raízes compartilhadas com a árvore da vida. No Gênesis, o homem é expulso por ter comido da árvore do conhecimento do bem e do mal, pois “se tornou como um de nós” (Deus, ou melhor, os Elohim) e caso comesse da árvore da vida, se tornaria ainda imortal. No mito grego, o fogo sagrado é o que separa os deuses dos homens e ao recebê-lo, podem realizar prodígios que antes só poderiam ser feitos pelos deuses. No mito judaico, ao comer do fruto proibido o casal é expulso do paraíso e lançado ao mundo. No mito grego, ao receber o fogo sagrado são castigados com o recebimento dos males do mundo, o que em síntese é a mesma coisa.

Também existe uma grande semelhança entre Pandora e Eva. Ambas são a primeira mulher e ambas são vítimas de uma armadilha. A primeira armadilha é a história de que “de tudo você pode comer, menos daquilo lá”. Dizer isso para uma criança (inocente), por exemplo, já é o suficiente para aguçar a sua curiosidade. Mas colocar ainda alguém lá, instigando, dizendo “você não tem curiosidade de saber por que será que não pode comer…?”, convenhamos, é uma situação impossível de se vencer. O mesmo acontece com Pandora. Os deuses dizem pra ela: “Leva a caixa, mas não abre!” Isso nos faz inferir que a queda era parte do drama da existência, condição sem a qual não se poderia chegar algum dia à verdadeira sabedoria. Para subir, é necessário primeiro baixar, diz o postulado hermético.

Os gnósticos do século II, considerados como grandes hereges por parte da igreja, faziam uma interpretação muito distinta da que hoje fazemos do Gênesis. Eles diziam que a serpente, na verdade, é o próprio Demiurgo, o Deus do Velho Testamento (assim como a árvore, a maçã e ainda o querubim que ficou na porta, com a espada flamígera). O mais curioso é que em nenhum momento a serpente mentiu pra Eva, pois Deus supostamente não queria que se comesse da maçã porque quando eles comessem, enxergariam como Deus (fato que depois é confirmado no mesmo texto).

Ambos os textos ainda deixam uma ponta de esperança à humanidade. O querubim bíblico não barra a porta eternamente, mas apenas protege a árvore da vida para que a impureza humana não a alcance. Igualmente, ao libertar os males do mundo, Pandora fez surgir na natureza humana a esperança, que é a fonte do ânimo para lutar e triunfar sobre todos os males. Isso nos faz entender que no momento em que somos lançados ao sofrimento é que inicia o trabalho de purificação e ascensão.

Prometeu e Epimeteu simbolizam a natureza humana, de origem divina, porém confinada à experiência mundana, uma vez que não vivem no Olimpo. Essa natureza  é dual: ela pode ser racional e sensata (Prometeu), porém também pode ser inconsequente (Epimeteu). Pela natureza sensata nos foi dado o direito de desfrutar do fogo sagrado. O fogo é símbolo do instinto procriador, sexual. Mas o fogo sagrado é mais do que isso. Ele é roubado dos Céus para ser entregue aos homens, seres que podem fazer um uso racional dele. Ainda assim, é fogo, mas é divino. Representa esse mesmo impulso sexual voltado para a sublimação da natureza humana em algo superior, divino. Novamente comparando ao Gênesis, o homem foi feito à imagem e semelhança do Criador, o que significa que a ele foi dado o poder de criar e esse poder reside nas gônadas sexuais. Mas a criação não se restringe a criar uma nova vida apenas, pois foi dito “crescei e multiplicai-vos”. “Crescer” refere-se a aprender a manejar sabiamente o fogo sagrado, em prol do autoaperfeiçoamento.

Prometeu, ao tomar o fogo sagrado para a espécie humana (que na verdade é ele próprio a essência dessa natureza, junto com Epimeteu), é castigado pelos deuses, assim como Adão, que é expulso do Éden e a partir de então deve lavrar a terra com o suor de seu trabalho. Prometeu é acorrentado à dura rocha e a ave de rapina vem devorar seu fígado todos os dias e à noite, o fígado se regenera. Prometeu, simbolizando o aspecto mais racional e sensato da essência humana, é acorrentado à rocha (a matéria, o corpo carnal, com seus desejos e paixões) e o abutre dos desejos vem devorar o seu fígado (que os gregos – assim como os chineses – acreditavam ser a morada dos desejos). Em outras palavras, o sacrifício de Prometeu é submeter-se às paixões humanas, consequência natural da tomada do fogo sagrado, pois mesmo sendo sagrado, ele arde e queima. À noite, ou seja, no momento em que há o repouso da atividade humana, o fígado se recompõe dos ataques passionais, para novamente ser atacado no dia seguinte. Ele só será liberto no dia em que encontrar-se com o messias grego (Héracles) e novamente encontramos um paralelo bíblico, pois o Cristo veio para redimir os pecados de Adão.

Epimeteu, em contrapartida, não sofre com o “crime” de Prometeu, pelo contrário, ele desfruta das núpcias com sua amada, dada pelos deuses. Epimeteu bem poderia ser comparado ao louco do Tarô, ou ao Dioniso grego. Prometeu sofre porque sua sensatez é limitada pela condição humana. Epimeteu se deleita com essa natureza. Um último paralelo, também profundamente significativo, poderia ser traçado entre Prometeu e Lúcifer, o anjo caído, pois foi condenado pela ousadia de querer tornar-se “como deus”… mas não seria exatamente essa a proposta da jornada humana?


(Roger Alves – Revolução Interior)

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